A participação pública na análise da reformulação do projecto agro-florestal anunciado para as herdades da Murta e Monte Novo (HM-MN) localizadas no concelho de Alcácer do Sal terminou esta terça-feira com quase 1200 cidadãos, associações de agricultores, ambientalistas e outras organizações públicas a pronunciarem-se sobre o empreendimento baseado na cultura de pêra- abacate. As muitas críticas ao plano de instalação de uma cultura tropical no actual contexto de escassez de água, sobretudo nesta região do país, estão a abalar o projecto. Mas será o suficiente para o fazer cair por terra?
O tom geral das críticas ao projecto proposto pela empresa Expoente Frugal Lda., do grupo Aquaterra, pode ser sintetizado nas palavras com que Regina Falcão, porta-voz do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), se expressou ao PÚBLICO: “Os interesses económicos não podem ser mais fortes do que a defesa de uma zona protegida, onde se pretende fazer uma cultura tropical, apesar de subsistir a escassez de recursos hídricos e uma seca estrutural.”
Conjugando o aumento crescente de água para assegurar as necessidades dos empreendimentos turísticos instalados no cordão dunar Tróia/Comporta e das culturas intensivas e tropicais localizadas, sobretudo, no concelho de Alcácer do Sal, “podemos dizer que a região está a saque”, critica a porta-voz do GEOTA.
“Já não há capacidade para repor os volumes de água que venham a ser captados”, acentua Regina Falcão, frisando a “leveza com se fala culturas de regadio, quando o nosso futuro está hipotecado”, dada a enorme procura de água que este tipo de sistemas culturais exige.
34 captações de água subterrânea
O estudo de impacte ambiental (EIA) elaborado para o projecto de Alcácer do Sal previa inicialmente que a rega dos 722,24 hectares (ha) de plantação de pêra-abacate implicaria um consumo total de água na ordem dos 4,35hm3/ano. Seria assegurado por 34 captações de água subterrânea, onde seria retirado um caudal estimado de 3,22hm3/ano através de 17 captações instaladas a uma profundidade superior a 100 metros e outras 17 que extrairiam água a profundidades inferiores a 50 metros.
Como o período de exploração das herdades da Murta e Monte Novo ocorrerá durante os meses de Dezembro a Fevereiro, a empresa terá de recorrer aos furos de grande profundidade para proceder à rega antigeada. A captação dos furos curtos ocorrerá nos meses de Inverno, e a dos profundos durante todo o ano.
Mas para responder a todas as necessidades do sistema de rega, que não podem ser asseguradas só por caudais subterrâneos, a empresa Expoente Frugal Lda programou a instalação no canal do Aproveitamento Hidroagrícola do Vale do Sado (AHVS) de uma captação de onde seriam retirados 1139hm3/ano.
O PÚBLICO perguntou ao representante da AHVS, Gonçalo Lynce Faria, se a Expoente Frugal estava autorizada a captar do canal de rega conforme salienta o EIA elaborado para as herdades da Murta e Monte Novo. “Essa indicação aparece em todo o lado, mas não há qualquer licenciamento efectuado nesse sentido”, salienta o dirigente da AHVS.
Basear a produção de pêra-abacate nos caudais captados de furos “é um erro e não tem qualquer viabilidade”, acentua Lynce Faria, que alerta ainda para as consequências resultantes do consumo de água proveniente dos aquíferos subterrâneos. A margem do rio Sado onde se pretende instalar o projecto “é rica em água, mas consumi-la da forma como está a acontecer faz com que já se vá notando sinais de secura, nomeadamente nos sobreiros”, aponta. “Já se observam fenómenos estranhos nas árvores.”
Plano reformulado, mas pouco
O EIA recorre ao Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Tejo e Ribeiras do Oeste programado para o período de 2022-2027, e esclarece que no Sistema Aquífero da Bacia do Tejo-Sado/margem esquerda, a recarga é de 820,86hm3/ano e os consumos são de 367,05hm3/ano, o que corresponde a uma taxa de exploração de 56%.
Face à diminuição da precipitação nos últimos 20 anos, “considerou-se oportuno diminuir o limiar dos recursos subterrâneos disponíveis de 90% para 80% da recarga média anual a longo prazo, com o intuito de proteger e preservar as águas subterrâneas, face à diminuição das disponibilidades hídricas subterrâneas e aumento das extracções sobre as massas de água”, salienta o referido documento.
De referir ainda que nas imediações deste projecto agrícola da empresa Expoente Frugal existem outros projectos agrícolas e captações cujos caudais são destinados ao abastecimento público e industrial que “também prevêem consumo de água subterrânea, e que totalizam cerca de 18,09hm3/ano”, salienta o EIA.
O representante da AHVS sublinha a preocupação dos homens do campo pelo aparecimento “deste tipo de gente que não são agricultores, pois não passam de empresários que procuram o lucro imediato e daqui a dez anos vão-se embora para outro lado”. Se a cultura de pêra-abacate for viabilizada, avisa, os “agricultores locais que têm culturas regadas baseadas em furos vão sofrer as consequências com a falta de água”.
Esta preocupação teve eco na comissão de avaliação (CA) do EIA e, a 31 de Janeiro de 2024, concluiu que o projecto apresentado “induzia impactos negativos significativos a muito significativos”, emitindo um “parecer desfavorável” ao projecto. No entanto, a mesma comissão admitia a sua reapreciação, se o mesmo fosse reformulado. O procedimento de avaliação de impacte ambiental (AIA) ficou suspenso a aguardar alterações ao projecto inicial.
Assim, o projecto reformulado pelo promotor apresenta agora uma área de 2402,10ha, conforme as cadernetas prediais, e envolve uma área total de intervenção de 734,48ha. A área agrícola afecta à produção de pêra-abacate, que anteriormente propunha plantar 722,34ha passará para os 658,44ha.
A disponibilidade hídrica também sofre uma redução para os 3,99hm3/ano (2,85hm3/ano de água subterrânea e 1,13hm3/ano de água superficial).
Açude da Murta pode secar
Lynce Faria considera que a reformulação do projecto não é mais do que uma forma de “deitar areia para os olhos das pessoas”, dada a dimensão residual do corte efectuado na área que a empresa pretende plantar, assim como nos consumos de água.
Por seu lado, o GEOTA destaca que o açude da Murta, situado na Herdade de Murta, é um importante lugar de biodiversidade que “fornece água doce a inúmeras espécies de aves e mamíferos, entre outros”. Sublinha ainda que “não se trata tão-somente de manter a diversidade de habitat, mas de concentrar esforços na mitigação das alterações climáticas, preservando e fomentando o uso sustentável dos recursos hídricos”.
O GEOTA deixa uma advertência: se os níveis de água subterrânea forem reduzidos pela extracção intensa para rega, “a nascente seca e a lagoa do açude pode secar, uma vez que as escorrências superficiais após as chuvas não são suficientes para manter a lagoa durante todo o ano”.
Agora, a CCDR Alentejo deverá pronunciar-se novamente sobre este projecto. Na prática, o que se constata é que “as sucessivas aprovações de projectos agrícolas e turísticos”, na sua maioria pela CCDR Alentejo, como autoridade de EIA, “já permitiu a destruição de 30% da área da Zona Especial de Conservação (ZEC) Comporta-Galé, assim como o consumo excessivo de recursos hídricos”. “Tudo indica que se está a preparar o caminho para a aprovação [do projecto da pêra-abacate]”, diz Regina Falcão.
Lynce Faria ainda tem alguma esperança e espera que a decisão da CCDR “o faça voltar mais uma vez para trás”.