O Governo anunciou e divulgou um Plano de Emergência da Saúde em que define vários objectivos programáticos, mas também medidas de implementação imediata e a curto prazo. Dessa vasta lista, nem todas são inovadoras e algumas são de difícil implementação sem que lhe sejam associadas outras, muito pragmáticas, nomeadamente a revalorização de carreiras profissionais sem a qual faltarão, como têm faltado, os recursos humanos indispensáveis para tornar qualquer planeamento eficaz. Faltará, pois um qualquer anexo que dê solidez às medidas prometidas.
Seguramente por defeito pessoal, não identifico muitas medidas inovadoras, mas algumas suscitam comentários e expectativas de clarificação:
1. Anunciam-se centros clínicos de atendimento e descompressão das urgências hospitalares. Já conhecemos o conceito sob o nome de SAP (Serviços de Atendimento Permanente) que funcionavam com base em médicos de Medicina Geral e Familiar. O actual modelo, em número inicialmente muito reduzido, seguramente necessitará de largo número de profissionais, se se desejar efectiva descompressão. O plano não clarifica como se conseguirão, mas seria interessante informar a população. Fazer omeletas sem ovos é um exercício culinário difícil.
2. Anuncia-se a divisão de uma especialidade médico-cirúrgica em duas (Obstetrícia e Ginecologia), tarefa que deveria caber à Ordem dos Médicos com os poderes delegados que lhe estão acometidos. Também se anuncia a criação de uma nova especialidade (Medicina de Urgência), igualmente competência da Ordem dos Médicos. Neste último caso a situação é particularmente chocante, pois o documento define um cronograma em que há duas alternativas (com apoio da Ordem dos Médicos, ou sem ele). Esta formulação é surpreendente e noutros tempos teria suscitado enérgica reacção da Ordem dos Médicos por ser remetida para um plano de irrelevância técnico-científica na definição do conhecimento e organização profissional, diferente da gestão de serviços e instituições, essa sim da exclusiva responsabilidade do Ministério da Saúde.
3. Anuncia-se, em dois locais diferentes (cronograma da página 89) que os doentes pediátricos são menores de 12 anos! Inicialmente pensei que seria um lapso da tal consultora que promoveu a junção das contribuições técnicas da “task force”, mas a falta de correcção do conteúdo, a resposta enfática do senhor primeiro-ministro sobre a origem governamental do documento, bem como a ausência de reacção da Ordem dos Médicos, deixam mais alguma preocupação. Principalmente por a task force incluir um conhecido pediatra a quem não escaparia tal gralha!
4. O sistema de urgências encerradas rotativamente passa a chamar-se “ligue ao SNS24”. Não parece haver grande inovação, mas será interessante acompanhar a modificação do processo e avaliar os seus resultados.
5. Menciona-se brevemente o envolvimento das farmácias no projecto assistencial, com alguma capacidade diagnóstica e de prescrição/venda de medicamentos. Para além do conflito ético e de interesses (separar quem prescreve e lucro de quem vende), é previsível que esse serviço (que sempre tem acontecido por todo o lado) passe a ter alguma remuneração associada, ou não seria necessário mencioná-lo. Nesse caso, qual a formação técnica em semiologia e diagnóstico clínico dos novos “prestadores”, qual a obrigação de documentação escrita dos conselhos dados e qual o nível de responsabilidade profissional associados a tal actividade? E, já agora, onde encaixa o conceito de Acto Médico, tão caro à Ordem dos Médicos?
Globalmente, este plano parece apostado em resposta imediata a pedidos assistenciais avulsos. Claro que será preciso despejar bastante dinheiro na cativação de mais tarefeiros e serviços de atendimento permanente. Não se sente um real empenho no reforço dos quadros assistenciais e na melhoria da sua eficácia (a teleconsulta será a resposta?) que fidelize cada cidadão ao seu médico de forma sólida, reduzindo o recurso a consultas de ocasião. Seria muito interessante realizar uma auditoria ou tese sobre a polimedicação associada a cada episódio de doença aguda ou agudizada, respectivos custos financeiros e atraso diagnóstico. Essa monitorização torna-se ainda mais premente quando se desenha a criação de uma nova especialidade que se concentra e esgota nesse tipo de actividade. O conhecimento não deve fazer medo a ninguém e ajudará a moldar as políticas de saúde.
Por fim, a proximidade e coexistência das mesmas pessoas em altos cargos da Ordem dos Médicos e agora em órgãos superiores do Ministério da Saúde, retira à Ordem o saudável distanciamento e independência para analisar as medidas de saúde propostas. A Ordem dos Médicos não deve ser um ministério-sombra, mas deveria manter capacidade crítica para identificar, aplaudir ou, também, criticar as medidas em cada momento anunciadas. Não duvido que, há poucos meses, várias das medidas agora apresentadas desencadeariam vigorosa reacção, indignação e crítica da Ordem dos Médicos. Portanto, a Oeste algo de novo!