Atraem-me irresistivelmente os pequenos conventos secretos, escondidos no fundo de vales de difícil acesso, invariavelmente ao lado de um ribeiro e onde só se chega a pé, por veredas e caminhos que tornavam o acesso propositadamente árduo. Talvez do que mais goste é do silêncio, do isolamento que atraiu, um dia, um ermita, que acreditou ter ali encontrado um lugar mais perto do Céu.
Procuro-os incessantemente, curiosa pela sua história, em busca de inspiração para os meus livros, e tenho uma lista dos que ainda não visitei. O Convento da Tomina era um deles, perdido algures no extremo ocidental da Serra Morena, no concelho de Moura, junto da fronteira, uma imagem num rótulo de uma garrafa de vinho, produzido pela família proprietária do lugar, um ponto nas rotas de “geodescoberta” criadas por gente que, como eu, quer ver o que caiu no esquecimento. E, infelizmente, tantas vezes no mais completo abandono.
Até agora. Por um acaso, descobri que uma das actividades promovidas pela Herdade da Contenda, uma gigantesca propriedade de mais de cinco mil metros quadrados cuja gestão cabe hoje à Câmara Municipal de Moura, é precisamente uma visita guiada ao Convento da Tomina. Inscrevi-me e começou a aventura.
Aprender a “ver com olhos de ver”
Que diferença faz percorrer um caminho com alguém com olhos de ver. Porque nem é tanto aquela ideia feita de que as coisas não são o que parecem — é mais a dificuldade de reparar naquilo a que não sabemos dar nome. Graças à chuva deste ano, as flores cobriram os campos, numa euforia contagiante.
O comum dos mortais, como eu, sabe distinguir as cores, claro, e perceber que umas são amarelas e outras vermelhas, ou que agora estamos numa fase de azuis e roxos, mas para o biólogo Pedro Rocha, que gere a Herdade da Contenda, todas elas têm um nome e uma razão de ser. Fazia lá eu ideia de que a Flor da Esteva, com as suas cinco chagas de Cristo impressas naquelas pétalas que parecem feitas de papel crepe e que murcham mal as apanhamos, eram da mesma família dos Olhos de Mocho, que só aparecem em anos gloriosos como este? Mas quando Pedro Rocha, as põe lado a lado, a diferença de tamanho esbate-se e encontram-se as semelhanças. Com 447 espécies de plantas diferentes identificadas na Herdade, a cada passo há sempre uma nova — e é ele que me mostra, por exemplo, as “pistas” num lírio, preparadas para a aterragem dos insectos polinizadores (é mesmo verdade).
Seguimos a pé por mais de cinco quilómetros, e aprendo a reconhecer as pegadas do lince, e os sinais de que por ali passou — provavelmente há menos de uma hora — um dos mais de 200 veados que aqui vivem livremente. Andam geralmente em grupos pequenos, que se vislumbram por entre as fiadas dos troncos das árvores, mas em tempo de dar à luz, como agora, as fêmeas procuram recantos mais sossegados para deixar nascer as suas crias.
Pedro Rocha, sem interromper o que me está a contar, debruça-se num gesto rápido e levanta-se de novo com… uma cobra fininha entre os dedos — como é possível que tenha dado por ela quando, ainda para mais, o marmoreado da sua pele se confunde com as pedras do caminho.
“Uma víbora?”, exclamo, mas obviamente que não, embora também existam por aqui. Pedro apanhou-a exactamente porque não a conseguiu identificar de imediato. Está entusiasmado e pede-me que fotografe a cabeça da cobra, para que o especialista que faz o levantamento das espécies a possa incluir na longa listagem dos residentes habituais da Herdade. Volta a colocá-la no chão, e ela serpenteia por entre as rochas, levando com ela uma história para contar.
Mas, subitamente, o Convento da Tomina capta a nossa atenção — percebem-se os seus contornos, e à medida que atravessamos os campos na sua direcção é a vez de Vânia Marujo, do Turismo de Moura, nos contar a história do fundador, Manuel de Jesus Maria, objecto de um trabalho de pesquisa pelo historiador Arlindo Manuel Caldeira e publicada na sua obra A ldeia de Santo Aleixo – Viagem ao passado de um povo da raia.
Recuamos ao século XVIII. Baptizado Manuel de Beça Leal, nasceu muito longe daqui, em Nespereira, na Lousada, filho do abade da freguesia, o que lhe deu direito não só a aprender a ler e a escrever, como a estudar latim. No entanto, um desentendimento com o pai levou-o ao Brasil, de onde acabou por regressar, porque por lá a vida também não lhe correu bem.
Enquanto procuramos um carreiro entre a erva alta, os chapéus puxados sobre os olhos para lhes dar sombra, imploro a Vânia para me contar mais, porque é uma magnífica contadora de histórias.
Pois então, Manuel de Beça Leal — ainda se chamava assim — decidiu rumar ao Alentejo em busca de fortuna, mas em Alcácer do Sal teve um inesperado encontro com uma pequena comunidade de ermitas, num momento em que dentro da Igreja Católica crescia o número dos que procuravam regressar à espiritualidade dos “Padres do Deserto”: ermitas, ascetas, monges e freiras que nos alvores do cristianismo viviam a sua Fé no deserto, isolados ou em pequenos grupos, em oração, jejuns e mortificações do corpo, e a partir dos quais nasceu o ideal monástico.
Inspirados, Beça Leal e um amigo partiram dali decididos a encontrar o seu “santo deserto”, e foi em Santo Aleixo, já na raia, que as gentes dali lhes garantiram que se buscavam aspereza a sério, então que continuassem em direcção à Serra de Arouche. E encontraram-na aqui, “no final da Defesa de Rabo de Coelho, légua e meia de Santo Aleixo, junto à Ribeira de Pae Joanes, que divide o reino de Portugal e a Terra da Contenda”, num lugar chamado Tomina, no meio de um bosque cheio de azinheiras e que, naquele tempo, era tão inabitável, que “nem os caçadores entravam nele, se não quando se ajuntavam a fazer suas montarias, por causa da muita bicharia e muitos lobos”.
Lobos, pergunto a Pedro Rocha, mas fico desiludida, os lobos não param aqui há muito, e embora nesta Primavera invulgarmente suave a “aspereza” pareça também coisa distante, temos consciência de que a verdura dos campos e a hospitalidade do lugar não serão as mesmas mal entrar o Verão e a terra, agora tão fértil, se transformar em pó, tornando quase impossível imaginar que tudo renascerá no ano seguinte — sim, decididamente, o Alentejo profundo é o lugar certo para quem quer um testemunho vivo do poder da ressurreição, penso eu, que o começo a conhecer melhor e o vejo passar de deserto a oásis e de novo a deserto.
Mas hoje é paraíso.
Já chegámos ao fundo do vale e ouvimos a ribeira a correr ao longe. Os vestígios da cerca do mosteiro estão deste lado, a cisterna, os muros das hortas, antigos galinheiros e pocilgas. Mas neste tempo a que recuámos, a Contenda era um território comunitário partilhado entre Portugal e Espanha, com regras estritas que proibiam construções perenes, e por isso Manuel Beça Leal foi obrigado a construir o seu “deserto” na margem esquerda, defendido por uma escarpa alta.
Cabelos longos e túnicas de burel
Pedro Rocha procura agora o melhor sítio para atravessarmos a ribeira, saltando de pedra em pedra, que brilham lavadas pela água cristalina, e estamos finalmente à porta do convento.
Vânia Marujo ajuda-nos a imaginar a choça inicial, feita de mato pelos dois ermitas, de cabelos e barbas longas, vestidos com uma túnica de burel, áspero como convinha a quem queria mortificar o corpo, conquistando rapidamente em quem se cruzava com eles uma aura de santidade, que levou os habitantes de Santo Aleixo a virem ajudá-los a fazer nascer o convento e uma pequena capela. E a instá-los a ordenarem-se padres, o que aconteceu em 1683, momento em que mudaram de nomes — a partir de então, o Padre Manuel de Jesus Maria e o Padre José do Rosário passaram a rezar aqui missa.
Calamo-nos perante o edifício que ameaça ruir, seguros de que se nada for feito urgentemente a torre seguirá o destino da outra que já tombou. Calamo-nos num silêncio doloroso por ver o abandono a que está votado.
Com cuidado, seguimos Pedro Rocha e entramos na igreja, onde se encontram ainda sombra das paredes pintadas com frescos e os nichos das imagens que desapareceram. A estrutura está ameaçada pelos braços de uma figueira que se expande sem contemplações no lugar onde dantes os ermitas e os peregrinos se ajoelhavam para rezar. Num buraco da parede, um devoto do século XXI inconformado com a destruição do lugar sagrado colocou uma fotografia emoldurada de Nossa Senhora das Necessidades, que outrora foi a padroeira desta igreja.
Voltamos a sair para a luz, observando a fachada do convento que chegou a acolher 18 ermitas, e com a ajuda de Vânia Marujo identificamos o corredor das celas, onde segundo os relatos havia apenas pequenos estrados de madeira de azinho, com uma cortiça por cima, e uma manta para as noites frias, como também as cozinhas, o refeitório, e, claro, as oficinas, porque o trabalho era obrigatório numa comunidade que se auto-sustentava.
O socorro de D. Pedro II
Depois começaram as invejas. Passeio entre as ruínas e não me espanto. A História repete-se, porque a essência humana é a mesma, e a humanidade parece fadada para construir, destruir e reconstruir, numa loucura que não cessa de me angustiar porque mesmo aqui, no fundo deste vale mágico, sobrevoados por uma magnífica águia-real (o orniturismo é outro dos projectos da Contenda, e os binóculos de Pedro Rocha permitem-me vê-la na perfeição), não consigo esquecer nem as tricas políticas do momento, nem a guerra na Ucrânia e em Gaza…
Voltando à história. Vânia consulta as suas notas, para, com rigor, me ajudar a entender tudo, e diz-me que em 1698, o Prior de Santo Aleixo, com ciúmes das ofertas feitas pelos seus paroquianos à congregação rival, apresenta queixa ao Arcebispo de Évora, que ordena que se mande arrasar o convento e expulsar os congregados.
Rio-me com o que acontece a seguir, tão familiar me parece: as gentes de Santo Aleixo pegam em todos os bens da Tomina, incluindo os sinos, e depositam-nos… onde? Do outro lado do ribeiro, claro, porque em terras da Contenda só mandavam os da Contenda. Mas, felizmente, o oficial encarregado de executar a sentença tirou apenas umas telhas e derrubou um pedaço de uma parede, apenas o suficiente para mostrar serviço, sem arriscar nem perder o emprego, nem incorrer nalguma fúria divina.
Mas o Padre Manuel de Jesus Maria não se fica. Parte para Lisboa decidido a queixar-se ao próprio rei, que era então D. Pedro II, irmão de Catarina de Bragança. O rei escuta-o, revoga a sentença, oferece ao convento a imagem do Senhor Jesus das Angústias, mas diplomaticamente dá uma no cravo e outra na ferradura. Ou seja, reduz para 12 o máximo de congregados, aceitando o argumento de que não podiam ser menos num lugar solitário e exposto a ataques de animais ferozes mas, simultaneamente, enviou um beneditino para redigir os Estatutos, exigindo que fossem confirmados pelo Arcebispo de Évora.
O “Deserto da Tomina” passava a ser oficialmente reconhecido. Mas se era para haver reconhecimento, que fosse pela mais alta instância, pensou o Padre Manuel. Ele e o seu co-fundador foram, nada mais, nada menos, do que a Roma, obtendo a aprovação do próprio Papa — Clemente XI, estávamos então em 1709.
Foram e voltaram, e trouxeram com eles permissão para abrir um outro convento em Mourão e uma nova casa em Grândola. Mas por esta altura já ia longe o rigor dos primeiros tempos e os dois padres desentenderam-se por alegados desvios de fundos e falta de transparência nas contas.
Está um dia tão bonito para um final tão triste, queixo-me, mas Vânia não nos poupa: “Manuel de Jesus Maria é submetido ao Tribunal Eclesiástico de Évora, que o condena ao silêncio, à interdição de entrada na Tomina e a pena de prisão, sendo esta comutada por recolhimento obrigatório no Convento do Alcance, em Mourão.”
Não pode acabar assim, protesto. E não acabou, mais tarde foi ilibado, mas morreu pouco depois, aos 67 anos, uma idade avançada para o tempo, prova daquilo que aqui se sente a cada inspiração: este ar perfumado de rosmaninho faz bem à saúde e o exercício de subir e descer estas veredas só pode fortalecer o coração.
A obra sobreviveu ao fundador, mas não à extinção das Ordens Religiosas, em 1834, quando os monges foram obrigados a abandoná-lo. Mesmo então os devotos de Nossa Senhora das Necessidades não permitiram que a Festa da Tomina se extinguisse — a imagem foi salva, transferida para a Igreja de Santo Aleixo, e no último fim-de-semana de Agosto continua a ser celebrada com pompa e circunstância, enquanto a sua verdadeira “casa” é engolida pelo tempo e a incúria, pela incapacidade de salvaguardar a História.
Ainda por cima, a dois passos de um projecto extraordinário e de grande sucesso como é o da Herdade da Contenda, que para lá do esforço de conservação desta herança, pratica um turismo sustentável e que aproxima as pessoas da natureza, para que, aprendendo a amá-la se sintam motivados a protegê-la. Que sentido faz que desta história empolgante dentro em pouco não reste mais do que uma placa a dizer “Aqui jaz o convento da Tomina”?
O Padre Manuel foi ao rei e ao Papa, e eu, eu fui perguntar à Câmara Municipal de Moura. O presidente, Álvaro Azedo, respondeu imediatamente às minhas questões, garantindo que tem em vista um projecto de conservação da ruína e de reabilitação do espaço, que o seu empenho é total, mas que o diálogo com o proprietário não deu, até ao momento, frutos.
Por seu lado, o proprietário, João Pedro Garcia, assegura-nos que está aberto a falar sobre uma solução. Fica a esperança, diria mesmo a exigência, de que a determinação e o carisma do fundador os inspire a defender urgentemente este nosso património, impedindo que deste “Deserto Sagrado” não reste mais do que uma imagem numa garrafa.