Quando um associado de um dos aliados mais próximos do Presidente russo Vladimir Putin lançou em Praga, em Maio de 2023, um meio de comunicação social pró-Kremlin, os agentes da contra-espionagem checa começaram-no a vigiar de forma muito atenta.
Durante quase um ano, segundo os serviços secretos europeus, as autoridades checas gravaram secretamente horas de reuniões entre vários políticos de direita radical e extrema-direita de toda a Europa e Artem Marchevsky, que geria o site de propaganda Voz da Europa, incluindo nos seus escritórios numa tranquila rua lateral no centro de Praga. As autoridades da União Europeia e da República Checa, que encerraram o site, classificaram o Voz da Europa como uma integrando uma rede de propaganda russa.
A investigação checa expandiu-se rapidamente para a Bélgica, Alemanha, Países Baixos, Polónia e França, segundo os funcionários europeus da segurança e dos serviços secretos, uma vez que os investigadores concluíram que o Voz da Europa era muito mais que um site pró-russo que entrevistava políticos europeus favoráveis ao fim da ajuda à Ucrânia.
A organização estava a ser utilizada para canalizar centenas de milhares de euros – até 1 milhão por mês – para dezenas de políticos de extrema-direita e direita radical em mais de cinco países, com o objectivo de colocar propaganda do Kremlin nos meios de comunicação social ocidentais, semeando a divisão na Europa e reforçando a posição dos candidatos pró-russos nas eleições desta semana para o Parlamento Europeu, de acordo com entrevistas com uma dúzia de funcionários dos serviços secretos europeus de cinco países. A maioria dos funcionários falou sob condição de anonimato.
As autoridades descreveram a operação russa como uma das mais ambiciosas levadas a cabo pelo Kremlin na Europa nos seus esforços para minar o apoio à Ucrânia e criar divisões na aliança transatlântica. As anteriores acções encobertas apoiadas pelo Kremlin incluem a tentativa de união da extrema-direita e da extrema-esquerda na Alemanha, o fomento de divisões internas em França e operações de sabotagem na Polónia, segundo o The Washington Post.
Ligação directa ao FSB e ao Kremlin
Documentos internos do Kremlin obtidos por um dos serviços secretos europeus e analisados pelo The Post mostram, pela primeira vez, que a Voz da Europa fazia parte de uma campanha de influência criada pelo Kremlin em estreita coordenação com Viktor Medvedchuk, o aliado de Putin que, até à invasão russa da Ucrânia, liderava um partido da oposição pró-Moscovo em Kiev.
Mais tarde, foi gerido por um importante súbdito de Medvedchuk que, segundo outros documentos, trabalhou em estreita colaboração com uma unidade do Serviço Federal de Segurança russo, ou FSB, responsável pela Ucrânia e por alguns antigos Estados soviéticos, também conhecido como o Quinto Serviço do FSB.
Após a expulsão da Europa de dezenas de oficiais dos serviços secretos russos, na sequência da invasão da Ucrânia, frentes como a Voz da Europa tornaram-se instrumentos para o Kremlin recuperar o terreno perdido, afirmou um dos mais altos responsáveis dos serviços secretos europeus. “Os serviços secretos russos tiveram de alterar o seu trabalho. O resultado é, por exemplo, redes de influência como a Voz da Europa”, disse o mesmo funcionário.
O estatuto do site como organização noticiosa foi concebido para dar cobertura, disse outro dos funcionários dos serviços secretos, tornando “mais fácil abordar os políticos” sob o pretexto de os entrevistar sobre a Ucrânia, o antiglobalismo e outras questões.
Michal Koudelka, chefe dos serviços de segurança interna da República Checa, afirmou que a operação da Voz da Europa era também uma tentativa de conseguir mais membros pró-russos para o Parlamento Europeu e que, após a votação que começa esta quinta-feira, “havia um plano para que as pessoas no Parlamento Europeu realizassem espionagem clássica” em nome da Rússia. “Foi uma operação que tinha como objectivo moldar a Europa”, disse Koudelka numa entrevista.
De acordo com algumas sondagens, os partidos de extrema-direita e da direita-radical poderão vir a ter 25% dos lugares no Parlamento Europeu, com 720 deputados. Para a Rússia, o aumento da influência desses partidos poderia constituir um mecanismo de ameaça à ajuda à Ucrânia, bem como um terreno fértil para a espionagem, segundo Vera Jourova, vice-presidente da Comissão Europeia. Os políticos pró-russos “podem realmente dificultar o financiamento [da Ucrânia]”, disse Jourova ao The Post.
Dezenas de milhares em dinheiro
A investigação checa levou a rusgas à casa e aos escritórios de um assessor de um deputado holandês de extrema-direita do Parlamento Europeu e de Petr Bystron, um dos principais membros da Alternativa para a Alemanha, ou AfD, de extrema-direita, e o candidato nº 2 do partido ao Parlamento Europeu. Bystron, o porta-voz da AfD para os negócios estrangeiros, tem sido um dos mais activos na Alemanha contra o envio de armas ocidentais para a Ucrânia e a favor do levantamento das sanções contra a Rússia.
As autoridades alemãs disseram em Maio que colocaram Bystron sob investigação por alegada corrupção e lavagem de dinheiro, no âmbito da investigação, e a polícia fez uma rusga ao seu gabinete no parlamento alemão, bem como a propriedades na Alemanha e em Espanha. Três dos altos funcionários dos serviços secretos europeus disseram ao The Post que, numa gravação, se pode ouvir Bystron a queixar-se a um funcionário da Voz da Europa sobre a dificuldade de transportar dezenas de milhares de euros em dinheiro para a sua casa de férias em Maiorca.
“Sabíamos que ele era pró-russo”, disse um dos altos funcionários dos serviços secretos, referindo os laços de longa data de Bystron com a Rússia e com políticos pró-russos na Ucrânia. O funcionário acredita que as autoridades reuniram agora provas que sustentam a acusação de que Bystron recebeu dinheiro da Rússia e, em troca, colocou propaganda em publicações de extrema-direita.
Bystron, nascido na República Checa, não era apenas “uma pessoa passiva que recebia dinheiro”, disse o funcionário. “Bystron, que fala russo, trouxe outras figuras políticas para a órbita da Voz da Europa e foi “o principal líder”. “Bystron tinha conhecimento dos planos para as operações de espionagem” no Parlamento Europeu, disse essa pessoa, acrescentando que havia provas registadas desse facto.
Bystron continua a ser candidato ao Parlamento Europeu e denunciou a investigação como uma conspiração dos serviços de segurança europeus para prejudicar a posição da AfD antes das eleições. “Antes de cada eleição é a mesma coisa: difamação com a ajuda dos serviços secretos”, disse ao Deutschland Kurier, um site AfD.
Numa breve troca de mensagens com o The Post, Bystron disse: “Já fizemos uma busca domiciliária durante uma campanha eleitoral em 2017, que foi posteriormente declarada ilegal pelos tribunais. Ninguém estava interessado depois das eleições”. Recusou-se a ser entrevistado e não respondeu a perguntas escritas pormenorizadas.
A AfD deverá ficar em segundo ou terceiro lugar no escrutínio desta semana, atrás da União Democrata-Cristã, de centro-direita, apesar da polémica que envolveu outros dirigentes da AfD. Os procuradores alemães declararam, em comunicado, que iniciaram uma investigação preliminar contra Maximilian Krah, alegadamente por ter aceite pagamentos da Rússia e da China pelo seu trabalho como deputado do AfD no Parlamento Europeu. A polícia fez uma busca no seu gabinete no âmbito de uma investigação sobre alegações de que um dos seus assessores estaria a trabalhar como espião para a China. Na quarta-feira, a polícia fez uma rusga à residência e aos escritórios do assistente parlamentar holandês que tinha trabalhado anteriormente para Krah.
Krah afirmou, em declarações ao The Post, que as alegações fazem parte de uma “campanha de desinformação contra o meu partido orquestrada pelos serviços secretos” e considerou as acusações “não só erradas” como “caluniosas”.
Os serviços de segurança europeus estão ainda a investigar o papel de dezenas de outros políticos de extrema-direita da rede Voz da Europa, incluindo de França, Bélgica e Holanda, bem como de mais seis figuras da AfD, incluindo políticos e assistentes parlamentares, segundo pessoas a par da investigação. As autoridades belgas também desempenharam um papel de liderança na investigação, com as principais reuniões da Voz da Europa com políticos a terem lugar noutros locais da Europa, incluindo Bruxelas, disseram altos funcionários.
Uma série de escândalos
Os responsáveis europeus pela segurança e os documentos do Kremlin ligam a criação da Voz da Europa no início de 2023 à administração presidencial russa e a Medvedchuk, que é tão próximo de Putin que o Presidente russo é padrinho da sua filha. Medvedchuk foi entregue à Rússia em Setembro de 2022 no âmbito de uma troca de prisioneiros entre Moscovo e Kiev. Era visto em Moscovo como um possível líder da Ucrânia, caso a invasão russa fosse bem sucedida e o Kremlin conseguisse instalar os seus aliados no poder em Kiev, segundo os serviços secretos.
Os documentos do Kremlin mostram que a Voz da Europa esteve inicialmente ligada a uma operação de propaganda russa lançada em Janeiro de 2023 pelo primeiro vice-chefe de gabinete do Kremlin, Sergei Kiriyenko. O objectivo era aumentar o apoio a Medvedchuk na Ucrânia e posicioná-lo entre os formadores de opinião europeus como um substituto viável para o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, promovendo conversações de paz “como alternativa a uma possível guerra nuclear”, afirmam os documentos. A campanha, denominada “A outra Ucrânia”, apresentaria Medvedchuk como chefe de um governo no exílio, segundo os documentos.
O objectivo era criar “uma organização que pudesse ser introduzida depois de a Rússia ter demonstrado a ilegitimidade do regime de Zelensky e negociar o fim da guerra a partir de uma posição de força”, disse um funcionário dos serviços secretos familiarizado com os planos.
Medvedchuk não quis comentar.
Os estrategas políticos do Kremlin, incluindo Ilya Gambashidze e Nikolai Tupikin, a quem os Estados Unidos impuseram sanções pelo seu papel em campanhas de desinformação, foram chamados para ajudar no lançamento do projecto, que previa a promoção de entrevistas com Medvedchuk e a sua organização Outra Ucrânia através de uma rede de redes sociais e contas no YouTube, e aparições nos meios de comunicação ocidentais, mostram os documentos do Kremlin.
A Voz da Europa era descrita como um “recurso noticioso”, tendo Marchevsky, um colaborador de longa data de Medvedchuk, ao seu leme, segundo um dos documentos. Em Julho, a sua gestão geral foi assumida por Renat Kuzmin, outro importante colaborador de Medvedchuk, que, segundo os documentos, trabalhava em estreita colaboração com o Quinto Serviço do FSB.
Nem o Kremlin nem Kuzmin responderam a pedidos pormenorizados de comentários.
A agência noticiosa de Praga, segundo os serviços secretos, deu a Marchevsky uma forma de envolver uma rede de políticos europeus extremistas, alguns dos quais, incluindo Bystron, tinham sido cultivados pelos aliados políticos da Rússia na Ucrânia desde que o Kremlin anexou ilegalmente a Crimeia em 2014. Essas relações foram frequentemente geridas por Oleg Voloshyn, um agente político responsável pelas relações externas do partido político For Life de Medvedchuk antes da invasão russa.
Numa entrevista, Voloshyn disse que apresentou Medvedchuk e Bystron em Berlim em 2020. Voloshyn disse que levou Bystron e Krah a Kiev para celebrar o seu 40.º aniversário em Abril de 2021, apresentando-os a Marchevsky, que na altura dirigia uma das três estações de televisão de Medvedchuk na Ucrânia.
Depois de Medvedchuk ter sido colocado em prisão domiciliária pelo governo de Zelensky e acusado de traição, Bystron e Krah deslocaram-se novamente a Kiev para visitar Medvedchuk em sua casa, uma viagem que suscitou preocupações entre os responsáveis europeus pela segurança.
A possibilidade de Voloshyn viajar para a Europa foi dificultada em Janeiro de 2022, pouco antes da invasão russa, quando o Departamento do Tesouro dos EUA o incluiu na sua lista de sanções, apelidando-o de “peão do FSB” nos esforços da agência de segurança russa para desestabilizar e dominar a Ucrânia. Voloshyn afirmou que as sanções – e as alegações de que estaria ligado aos serviços secretos russos – se baseavam em informações incorrectas.
Quando Bystron fez uma viagem secreta à Bielorrússia em Novembro de 2022 – reconhecendo a visita apenas depois de esta ter sido revelada pelos meios de comunicação social lituanos e alemães – encontrou-se com Voloshyn, que se tinha mudado para lá na sequência da invasão russa, disse Voloshyn ao The Post.
Voloshyn afirmou ter estabelecido uma ligação telefónica entre Bystron e Medvedchuk durante a visita, mas insistiu que o alemão e o ucraniano não falaram mais do que alguns minutos. Numa entrevista ao The Post em 2023, Bystron disse que se encontrou apenas com funcionários bielorrussos durante a viagem. Pouco depois da visita, Bystron apresentou ao parlamento alemão um plano de paz favorável ao Kremlin.
Com a impossibilidade de Voloshyn se deslocar à União Europeia, Marchevsky tornou-se o rosto da Voz da Europa em Praga.
Marchevsky não respondeu a um pedido de comentário pormenorizado. Em comentários anteriores ao Financial Times, negou ter trabalhado como procurador de Medvedchuk e disse que não estava envolvido na gestão da Voz da Europa, alegando que a sua empresa era apenas um contratante externo. Recusou-se a revelar o seu paradeiro depois de ter fugido da República Checa.
Uma série de escândalos que perseguem o AfD – incluindo uma declaração de Krah segundo a qual nem todos os membros das SS nazis da Segunda Guerra Mundial foram culpados de crimes – prejudicou, mas não destruiu, a posição do partido antes das eleições para o Parlamento Europeu. Krah retirou-se da corrida e espera-se que o AfD obtenha pelo menos 15% dos votos, o que lhe permitiria ficar em segundo lugar na Alemanha.
A declaração de Krah sobre as SS levou o partido União Nacional, em França, liderado por Marine Le Pen, a dizer que não se sentaria com o AfD no Parlamento Europeu. Mas o facto de o AfD pertencer a esses grupos oficiais pode não significar muito quando se trata de votar questões relacionadas com a Rússia ou a Ucrânia, disse um dos funcionários dos serviços secretos europeus.
Os serviços secretos checos, por exemplo, continuam vigilantes. “Parámos [a operação Voz da Europa] e estou muito orgulhoso dos meus serviços”, disse Koudelka. Mas há receios de que outras redes possam estar a funcionar noutros países europeus. “Esta luta não tem fim”.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post